Paulo Prega em Roma (Atos 28:17- 31)
A cena final retrata algo que era da maior importância para Lucas, a
saber, a proclamação do evangelho em Roma por Paulo. O padrão do
ministério do apóstolo, que Lucas com toda fidelidade traçou noutras
passagens, repete-se pela última vez. Tão cedo o apóstolo se estabelecera,
entrou em contato com os líderes judeus a fim de explicar sua própria
posição e falar-lhes de Cristo. Como ocorria em geral, uns poucos se
interessaram; alguns teriam chegado a crer, mas a maioria permaneceu
cética. Paulo declara, então, que a partir de agora a mensagem seria
proclamada aos gentios. E assim o livro se encerra, como se deixasse ao leitor
algo que se poderia chamar de programa da igreja. Lucas nada nos diz a
respeito do relacionamento de Paulo com a igreja em Roma, e do apelo que
o apóstolo havia feito. Entretanto, a sugestão que alguém fez de que Lucas
ficou em silêncio a respeito da igreja a fim de apresentar Paulo como o
pioneiro no trabalho missionário ali é fazer-lhe grande injustiça. Lucas havia
reconhecido já a presença de cristãos em Roma (v. 15; cp. 18:2), e seu
propósito agora era fazer que Paulo chegasse à cidade em demonstração
(simbólica) de seu tema, segundo o qual as testemunhas do Senhor haviam
saído de Jerusalém e chegado aos confins da terra (cp. 1:8).
28:17 / Parece que logo se fizeram acertos para que Paulo ficasse
hospedado em algum lugar da cidade, pois, quando ele se encontrou com os
líderes judaicos três dias após sua chegada, isto dificilmente teria acontecido
na Castra Praetoria, ou noutra instituição militar ou governamental. Ele
próprio pagava o aluguel da casa (veja a nota sobre o v. 30). Isto teria sido
possível ou mediante a generosidade de amigos (cp. Filipenses 4:10, 14, 18)
ou pelo fato de Paulo ter alguns recursos próprios (veja a nota sobre 21:24 e a
disc. sobre 24:26). É possível que passasse a exercer sua profissão. De
acordo com Ulpiano, eminente jurista romano do terceiro século d.C, os
prisioneiros que aguardavam julgamento tinham permissão para trabalhar e
morar em alojamentos particulares. As condições de Paulo poderiam ser
descritas como "prisão domiciliar". Ainda estava algemado a um soldado,
com uma corrente leve (v. 20), de modo que não podia entrar e sair como lhe
agradasse; fora isso, todavia, gozava de considerável liberdade, de modo
especial a de poder receber em sua casa a quem quer que desejasse (cp.
Josefb, Antigüidades 18.168-178).
Sua primeira tarefa, desde que instalado em sua própria casa, foi
convocar os principais dos judeus a fim de explicar-lhes sua posição —
seria sua última defesa perante os judeus. Sabe-se que na antiga Roma teriam
existido treze sinagogas pelo menos, embora nem todas existissem nessa
época (veja as notas sobre 2:9-11) nem enviassem seus representantes a essa
reunião. Os que compareceram teriam sido anciãos e líderes de sinagogas. A
tentativa de Paulo de esclarecer a situação não foi coroada de pleno êxito,
mas pelo menos conseguiu explicar por que era prisioneiro em Roma.
Devia-se, disse o apóstolo, à agitação dos judeus contra ele. Atirara-se
contra Paulo (ou contra seu relatório) a acusação de que ele distorceu os
fatos ao atribuir aos judeus a principal responsabilidade de seu
encarceramento, quando, na verdade, eles apenas incidentalmente tomaram
parte nisso (cp. 21:33). Todavia, temos aqui apenas um resumo, não um
relatório pormenorizado, e o que o apóstolo havia dito seria essencialmente
verdadeiro, visto que sem dúvida Paulo estaria livre se os judeus não
persistissem em sua perseguição. No entanto, nada fizera o apóstolo, afirma
ele, contra seu povo ou contra seus costumes (cp. 25:8).
28:18 / Este versículo faz referência ao inquérito judicial conduzido
por Félix e Festo, pelas quais não se conseguiu provar nenhuma das
acusações contra Paulo. Mas em parte alguma se registrou, senão agora, que
os governadores desejavam libertá-lo (queriam soltar-me). Quando Agripa
manifestou sua opinião de que Paulo "bem podia ser solto" (26:32), Festo
poderia ter concordado, como presumivelmente pelo menos concordou,
tivesse afirmado isso ou não.
28:19 /Não ficou registrado que os judeus explicitamente se opuseram
ao desejo do governador de libertar a Paulo, mas a oposição deles fica
implícita com clareza na persistência com que mantiveram as acusações
contra o apóstolo dois anos após (25:2, 7). A mesma pressuposição
transparece na proposta de Festo, em 25:9. Crendo, portanto, que mais cedo
ou mais tarde cairia vitimado pelos estratagemas de seus inimigos judeus,
Paulo nenhuma outra opção tivera senão a de apelar para César. Todavia, ele
desejava garantir aos judeus romanos que não desejava mal algum a seu povo.
Paulo ainda se considerava um judeu, um israelita. Observe a linguagem
conciliatória: "Irmãos", "os ritos paternos", (v. 17), minha nação.
28:20 / Por esta razão, a saber, eles ainda eram seu povo, Paulo pediu
para ver os judeus romanos a fim de dizer-lhes o que havia acontecido. O
que estava em jogo na verdade era "a esperança de Israel" no Messias e no
reino (veja a disc. sobre 26:6s.), e a crença em que tanto o reino quanto o
Messias haviam chegado. Em suma, ele suportava algemas romanas não por
causa de alguma deslealdade contra seu povo, mas por lealdade à esperança
que haviam compartilhado.
28:21 / Os líderes judaicos responderam que nada haviam ouvido a
respeito daquele caso, nem por carta nem por mensageiro. Mas isso era de
esperar-se. Houvesse Paulo sido enviado a Roma logo após seu apelo, o
Sinédrio talvez não tivesse conseguido enviar um recado aos judeus
romanos antes de o próprio Paulo chegar àquela cidade, visto que o
apóstolo teria partido num dos primeiros navios para a Itália na abertura da
estação de viagens marítimas. Entretanto, de modo algum é certo que o
Sinédrio tivesse qualquer intenção de prosseguir no processo. Os judeus
não haviam sido felizes ao processar Paulo perante Félix e Festo; depois,
Festo e Agripa na verdade o consideraram inocente, inculpável de qualquer
crime. A perspectiva judaica de conseguir a condenação de Paulo em Roma
não tinha a menor probabilidade, e às vezes as autoridades romanas davam
um tratamento duro aos acusadores que não conseguiam comprovar suas
acusações. Tampouco podia o Sinédrio razoavelmente esperar que os judeus
de Roma aceitassem a causa que lhes teria sido encaminhada, visto que a
própria situação deles nessa cidade era precária; dificilmente teriam desejado
chamar a atenção sobre si mesmos mediante um processo contra Paulo. É
muito provável, portanto, que nenhuma mensagem teria sido enviada da
Judéia a Roma, e nenhuma carta haveria de chegar, por certo.
28:22 / Entretanto, embora os judeus romanos nada tivessem ouvido
acerca dessa questão em particular, saberiam algo a respeito de Paulo, nada
relacionado ao processo, e com toda certeza sabiam alguma coisa — e o que
sabiam não era bom, disseram eles — com respeito a esta seita a que o
apóstolo pertencia. Tinham interesse, portanto, em ouvir-lhe as idéias. É
evidente que pouco contato havia agora entre os cristãos e os judeus de
Roma (veja a disc. sobre 18:2 e as notas), que os impelisse a pedir a Paulo
que lhes expusesse suas crenças, a menos, evidentemente, que o fizessem por
mera polidez.
28:23 / Marcou-se uma data na qual Paulo lhes falaria, e ao chegar
esse dia, um número bem grande de judeus (maior do que na vez anterior)
apresentou-se em sua residência. Paulo passou o dia todo tentando
persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos
profetas, que Jesus era o cumprimento das Escrituras, e o Messias que
haveria de estabelecer o reino de Deus (veja a disc. sobre 1:3 e as notas e
disc. sobre 8:12). Esse sumário da pregação paulina aos judeus romanos
corresponde a outros sumários anteriores, em 17:2s e 18:5. E possível que
seu sermão seguisse, com pormenores mais abundantes, o padrão de sermão
de 13:16-41.
28:24-27 / À semelhança da pregação, o resultado saiu fiel ao padrão.
A mensagem de Paulo dividiu os ouvintes em dois grupos. Alguns eram
persuadidos pelo que ele dizia, mas outros não criam (v. 24; cp. 14:4;
17:32). Isto parece ter sido, assim mesmo, um excelente resultado, mas que é
que significa alguns eram persuadidos? Talvez nada mais significasse que
eles estavam interessados e preparados para ouvir o que Paulo lhes tinha a
dizer. O fato de Paulo, aparentemente, ter-lhes dirigido suas observações
finais, a todos indistintamente, sugere que nenhum deles se vira persuadido
ao ponto de crer que Jesus era o Messias. Entretanto, os tempos verbais estão
no imperfeito, pelo que permanece a possibilidade de que esse processo de
persuasão tenha prosseguido até que alguns se convertessem. No entretempo,
os demais prosseguiram incrédulos ("outros não criam").
Antes de os judeus partirem, embora eles ainda discordassem entre
si (v. 25) — a palavra grega é asymphonoi, falta de harmonia — Paulo tinha
uma última coisa a dizer. Mais com tristeza que com raiva ele mencionou
as palavras de Isaías 6:9, 10, atribuindo-as ao próprio Espírito Santo (veja a
disc. sobre 1:16). Estão reproduzidas aqui integralmente como citação da
LXX. Paulo reconhecia que tais palavras haviam sido dirigidas
primeiramente a uma geração anterior, mas seu cumprimento final ocorrera
na geração dos judeus de seus dias, aqueles homens que não queriam
"entender" nem "ver", pois, ouvindo, ouvireis, e de maneira nenhuma
entendereis; vendo, vereis, e de maneira alguma percebereis, não
desejando ouvir a verdade a respeito do pecado e da necessidade de
salvação (vv. 26, 27). Estavam resistindo ao Espírito Santo (cp. 7:51) e,
enquanto assim procedessem Paulo não se identificaria com eles, embora ele
ainda se referisse a nossos pais (v. 25, como no v. 17). O próprio Jesus havia
citado essas palavras de Isaías (Mateus 13:14s.), como João haveria de
fazê-lo ao compor seu evangelho (João 20:40). Paulo já as havia utilizado
ao escrever aos romanos (Romanos 11:8). A freqüência do uso significa que
tal passagem havia passado para a lista de testemunhos do Antigo Testamento
que proveriam à igreja uma explicação para a dureza do coração de Israel
(veja C. H. Dodd, Scrip-tures, pp. 38s.).
28:28 / Entretanto, Paulo terminou com uma nota de triunfo: esta
salvação de Deus é enviada aos gentios, e eles ouvirão (cp. 13:48).
Devemos lembrar-nos, entretanto, de que isto havia sido falado num
contexto do que Paulo já escrevera em Romanos 9-11, que Deus não havia
rejeitado para sempre a seu povo. A incredulidade de Israel no presente
momento significava que os gentios seriam chamados, mas essa inclusão dos
gentios no reino com o tempo suscitaria um espírito de "ciúme"; Israel se
voltaria e "todo o Israel será salvo" (Romanos 11:11, 26). Não podemos
duvidar de que Paulo tenha falado dessa forma não meramente para
condenar, mas com a esperança de que esses judeus romanos se
arrependessem. De qualquer maneira o evangelho não falharia, mas seria
pregado "até que a plenitude dos gentios haja entrado" (Romanos 11:25; cp.
Isaías 55:11). Eles ouvirão é a palavra final de Paulo. Nada pode
interromper a marcha da verdade de Deus "até os confins da terra" (1:8).
28:30-31 / À guisa de ilustração deste tema, Lucas nos dá um retrato
não algo semelhante aos camafeus dos capítulos anteriores que mostram
o firme crescimento da igreja (veja a disc. sobre 2:42-47) — mas o de
Paulo realizando a obra de um evangelista a todos os que o visitavam em
sua casa de aluguel (v. 30). Durante dois anos ele fez isso como prisioneiro,
mas a palavra de Deus não estava presa (cp. 2 Timóteo 2:9). As palavras
finais do livro: pregando o reino de Deus e ensinando com toda a
liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem
impedimento algum (v. 31; veja a disc. sobre 4:13) sublinham ao mesmo
tempo a confiança pessoal de Paulo (cp. Filipenses 1:20) e o alvo que ele
perseguia com alegria, ao pregar sobre o reino de Deus e... as coisas
concernentes ao Senhor Jesus Cristo (v. 31; veja a disc. sobre 1:3 e as
notas e a disc. sobre 8:12). Estes dois fatores — a ousadia do pregador e a
proclamação a todas as pessoas — constituem as últimas impressões deste
livro. Talvez sejam uma repreensão, e com certeza são um desafio e mapa a
todos quantos lêem estas palavras. Lucas nos convida a que sigamos a Paulo
e aos demais obreiros na missão e na devoção, no trabalho de estabelecer "o
corpo de Cristo" neste mundo.
Novo Comentário Bíblico Contemporâneo ATOS David J. Williams
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